11.5.15

No meio da entrevista...

Tem uma fala muito importante. A Folha, como padroeira dos advogados criminais, nunca iria destacar o trecho que destaco. Mas é relevante e importante.

Transformar a corrupção em crime hediondo é inócuo

Para ex-ministro do STJ, problema da impunidade decorre da falta de pessoal no judiciário e da baixa qualidade de muitas investigações
MARIO CESAR CARVALHO DE SÃO PAULO
Ex-ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), o advogado Gilson Dipp diz que transformar corrupção em crime hediondo ou aumentar a pena é uma medida inócua. "Se aumento de pena fosse intimidar, não teríamos mais crimes hediondos. Nenhum. Mas o tráfico aumenta, o homicídio aumenta", afirma.
Para ele, o problema da impunidade no país decorre da falta de funcionários na Justiça e no Ministério Público e da baixa qualidade de muitas investigações.
Aposentado no ano passado, Dipp, 70, escreveu um parecer para uma das empresas investigadas na Operação Lava Jato, a Galvão, na qual diz que a delação premiada do doleiro Alberto Youssef é imprestável porque ele já descumpriu um acordo anterior.
Criador das varas especializadas em lavagem de dinheiro, Dipp incentivou o trabalho de juízes federais como Sergio Moro e Fausto de Sanctis, mas é contra proposta defendida por eles de mandar para a prisão a partir de decisão de segunda instância, como ele diz nesta entrevista.
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Folha - O sr. escreveu um parecer dizendo que a delação de Youssef é imprestável porque ele descumpriu um acordo anterior. Há outros problemas na Operação Lava Jato?
Gilson Dipp - Estamos numa situação excepcional. Os mesmos delitos imputados aos acusados estão sendo examinados concomitantemente por um juiz de primeiro grau e pelo Supremo Tribunal Federal, com passagens pelo Tribunal Regional Federal e pelo STJ. Isso nunca aconteceu no Brasil.
É um processo que envolve todos os graus da Justiça. E temos acordos de delação sobre os mesmos ilícitos que são feitos no primeiro grau e homologados no Supremo, no caso de deputados e senadores. Isso vai causar dúvidas. O meu entendimento é que, tendo os mesmos ilícitos e as mesmas provas, deveria haver uma unidade de juízo para que não houvesse decisões contraditórias.
Uma prova pode incriminar alguém em primeiro grau e inocentar outro no Supremo.
Pode acontecer. O Supremo sempre manteve a unidade de juízo, inclusive na ação penal do mensalão. Os que tinham foro privilegiado e os que não tinham foram julgados pelo Supremo. Após o mensalão, percebeu-se que um processo desse tamanho paralisa o Supremo, e só ficaram lá os casos dos políticos que têm foro privilegiado.
O sr. concorda com a divisão?
Entendo que, havendo conexão de provas, apenas um juízo deveria tomar decisões, como foi no mensalão. Sou contra o foro privilegiado para políticos, mas, já que há, o Supremo deveria ficar com todas as ações penais.
A investigação da Lava Jato está sendo bem-feita?
Parece que sim. Tanto que já gerou várias ações penais e algumas condenações. O que é peculiar é que boa parte dessa investigação decorreu de acordos de delação premiada. Isso causa uma certa perplexidade.
Qual o problema?
Não é um problema. Delação é um instituto legal que já vinha sendo usado. A colaboração é um instrumento de obtenção de elementos de provas, e não de provas. Tudo que é dito tem de ser investigado e provado.
Há problemas em alavancar a apuração com delações?
Não. É um método de atalhar a investigação. Em vez da pesquisa de campo, já se parte de uma informação relevante. Resta saber se em alguns casos existiu voluntariedade do colaborador. Não posso afirmar isso, mas já ouvi que as prisões preventivas foram longas para facilitar acordos de delação. A preocupação deve ser com a qualidade das provas. As operações Satiagraha e Castelo de Areia tinham provas ilícitas.
O STF libertou dez empreiteiros com o argumento de que o juiz Sergio Moro havia exagerado no tempo da prisão preventiva. O sr. concorda?
A prisão provisória só se sustenta em casos em que o acusado possa interferir na prova, ameaçar testemunha, escapulir ou, num conceito muito amplo, de manutenção da ordem pública.
Há um complicador, o excesso de prazo. O prazo da preventiva é de 90 dias. Não sou juiz do caso, mas acho que a prisão não era mais necessária, porque as provas já tinham sido colhidas.
O que o sr. acha de o Supremo ter ordenado que os presos usassem tornozeleira?
Os pressupostos das penas alternativas [como a tornozeleira] são os mesmos da prisão preventiva. Se não cabe prisão preventiva, não cabe pena alternativa. Mas não estou criticando o Supremo.
Os procuradores da Lava Jato têm dito que, além de investigar a Petrobras, querem aperfeiçoar o combate à corrupção e reduzir a impunidade no país, numa espécie de cruzada.
Não é apenas o Ministério Público. Tem o Executivo e o Congresso. Frente a uma indignação da sociedade, como os protestos de junho de 2013, lançaram um pacote de leis de ocasião, como se estivessem dando uma resposta à sociedade: criam-se leis, aumentam-se penas. Até a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) lançou um pacote de ocasião. Não precisa de lei nova nem aumento de pena.
Por quê?
Se aumento de pena fosse intimidar, não teríamos mais crimes hediondos. Nenhum. Mas o tráfico aumenta, o homicídio aumenta. Transformar a corrupção em crime hediondo é inócuo. Os presídios estão lotados e em péssimas condições. Alguém acha que vai deixar de haver corrupção no mundo se a pena for aumentada? Ou é a impunidade que gera os crimes?
Há algum ponto positivo nesse pacote de leis e propostas?
A Lei Anticorrupção é boa, mas complexa. Nós não tínhamos uma lei para responsabilizar a pessoa jurídica, como preveem as convenções internacionais. O que é curioso é que as palavras corrupção e suborno não aparecem na lei. Aparecem atos ilícitos.
A regulamentação da lei, que deveria tratar apenas dos programas de integridade, de "compliance", extrapolou. Ela prevê que a CGU [Controladoria Geral da União] tenha competência para abrir processo administrativo. A CGU só pode atuar em empresas como a Petrobras.
O regulamento também estipula que a multa mínima pode ser inferior à multa prevista na lei, de 1% a 20% sobre o faturamento do ano anterior. Tenho criticado isso há muito tempo. O regulamento não pode ultrapassar a lei, mas isso ocorreu porque ele foi contaminado pela situação factual. A CGU tem um protagonismo exagerado na lei.
Depois de editada a lei, o TCU [Tribunal de Contas da União] quer que todos os acordos de leniência passem pelo crivo dele. Será que isso diz respeito ao TCU? Tem protagonista que extrapolou os seus limites, e tem coadjuvante que nem deveria estar ali. O palco é pequeno.
Por que persiste a sensação de impunidade nos crimes financeiros? Os juízes propõem que a pena de prisão seja aplicada a partir da segunda instância. Isso reduziria a corrupção?
Não. Claro que a celeridade no julgamento de um crime diminui a sensação de impunidade. Mas nosso sistema constitucional não permite isso, porque temos a presunção de inocência até a decisão definitiva. O que dá margem para muitos e inapropriados recursos. Mesmo que vingasse essa orientação [de prender após decisão de segunda instância], sempre haveria o habeas corpus.
Isso não seria possível no Supremo dos EUA.
Lá o sistema é diferente e não dá essa defesa imensurável. O nosso direito de defesa é o mais amplo do mundo.
Essa amplitude não atrasa o processo e gera impunidade?
Sim. O Judiciário e o Ministério Público não estão aparelhados nem têm gente para a quantidade de recursos que existem. Isso provoca demora excessiva no processo e gera a sensação de impunidade.
Como reduzir essa sensação?
É preciso ter uma investigação mais bem-feita e mais célere para que o Judiciário possa se manifestar com mais segurança.
O problema é a qualidade da investigação?
Não. É um conjunto de fatores. Quantas ações não foram anuladas pelas insuficiências da investigação? Quantas outras se perderam na burocracia ou no excesso de recursos no Judiciário? Temos que repensar o sistema.
Os procuradores dizem que empresas corruptas não merecem ser salvas, apesar de gerarem empregos. O sr. concorda que combater a corrupção é mais importante do que preservar empregos?
Não. Tem de haver bom senso entre todos os atores envolvidos. Temos que discernir entre punição, manutenção de empregos e a estabilidade da economia. É muito difícil aqui escolher prioridades. O interesse social está na punição, mas também está na manutenção dos empregos.
Os procuradores também criticam bastante a CGU, com o argumento de que as investigações da Lava Jato não acabaram e os acordos de leniência deveriam ser adiados.
As instâncias têm autonomia. O Ministério Público apura crimes. A CGU apura o processo administrativo e a responsabilidade das empresas para fins de indenização. Cada ator deve ficar no seu papel. O que é preciso verificar é se a lei pune as empresas para que o erário seja ressarcido ou pune com a pena de morte.

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