WILSON TOSTAA
cada bimestre, uma pessoa deixou de ser morta em cada uma das comunidades sob vigilância das 27 UPPs instaladas em favelas cariocas a partir do fim de 2008, afirma o sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ). "Estamos falando de 400, 500 vidas salvas por ano", diz o acadêmico, com base na pesquisa Os Donos do Morro: Uma Avaliação Exploratória do Impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Estado do Rio de Janeiro, que coordenou. Apesar dessa queda - a 28ª UPP foi inaugurada na quinta-feira, na Rocinha -, há resistências ao projeto. Em alguns lugares, moradores reclamam da proibição de barulho à noite, que inviabiliza bailes funk e rodas de samba; em outros, garotos protestam contra as forças de segurança aos berros de "UPP vai morrer"; e há ainda favelas cujos habitantes rejeitam o termo "pacificação" - não há guerra, afirmam. O trabalho descobriu ainda que os próprios policiais desvalorizam os PMs de UPP, chamados nos batalhões de smurfs ou smurfetes devido ao uniforme azul (diferente da farda cinzenta do resto da corporação) e à atitude supostamente menos belicista, repudiada pela cultura de confronto. Até os policiais das UPPs desvalorizam seu trabalho e sonham ser policiais "normais", como aqueles que os ridicularizam com o apelido.
"Eles se sentem fazendo outra coisa que não é polícia", explica Cano, ao descrever as unidades lançadas pela Secretaria de Segurança em 2008. As novas estruturas, instaladas após a tomada de cada favela pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope), se caracterizam pela saturação das comunidades com PMs recém-formados. O tráfico, porém, continua, escondido, sem exibir armas.
O trabalho também chegou a uma conclusão inquietante: no formato atual, o programa não pode ser levado a todas as áreas que precisariam dele, devido à grande quantidade de policiais exigida para sua reprodução nos mesmos padrões. "Não é possível multiplicar a polícia por oito, por nove", diz Cano. Em uma conta rápida, a PM do Rio, atualmente com 38 mil integrantes, precisaria ser ampliada para pelo menos 304 mil militares, número que supera os 200 mil membros do Exército, por exemplo, e provocaria uma explosão de custos em salários, treinamento, armas. Só nas primeiras 13 UPPs, a PM mantinha, segundo a pesquisa, 18,2 policiais para cada mil habitantes - com casos como o do Morro Dona Marta, onde 217 agentes foram escalados para uma população de 3.513, ou seja, 61,8 PMs por mil.
Também fica esmaecida na pesquisa a imagem, transformada em instrumento de propaganda do governo fluminense, das áreas das favelas com UPPs como regiões pacíficas. Em contraste com os vídeos publicitários com moradores das áreas de UPP felizes e esperançosos, o trabalho mostra que, simultaneamente à queda da violência, cresceu o número de furtos e lesões corporais nas comunidades atingidas pelo programa. E revela que a relação moradores/PM nas áreas do projeto vai da integração absoluta, como no Jardim Batam, à hostilidade, como no Fallet/Fogueteiro/Coroa.
O que mais chamou a atenção
nos resultados da pesquisa?
Em primeiro lugar, a constatação de que os resultados de redução na mortalidade se obtêm independentemente da razão policiais/habitantes. Nos locais com mais ou menos saturação de policiais o resultado é paralelo. Mesmo onde a relação entre polícia e comunidade é bastante tensa, há redução de mortalidade. Ou seja, daria para obter os mesmos resultados com menos policiais, portanto daria para estender o projeto a mais locais, e o projeto tem um potencial muito positivo na redução dessa violência armada, mesmo quando outros problemas de segurança, como a relação entre polícia e comunidade, não estão resolvidos. Outro elemento importante é a falta de legitimidade do projeto entre os próprios policiais. Afora os comandantes que estão identificados, os sargentos e os soldados prefeririam trabalhar em um batalhão normal.
Por que isso acontece?
Há um conjunto de elementos. A gratificação, de R$ 500, não funciona. Ela atrasa, tem desconto de Imposto de Renda. E para os policiais do resto das unidades, que conseguiram uma gratificação de R$ 350 justamente em função da desvantagem em relação às UPPs, esses R$ 350 são pagos regularmente, sem desconto. Em segundo lugar, as condições de trabalho são duras. Os PMs das UPPs têm de subir e descer morro, alguns estão alojados em contêineres e a reação da comunidade a eles nem sempre é muito positiva. Os PMs ainda entram no trabalho meia hora antes porque precisam passar no batalhão para pegar a arma e o veículo. Depois vão para a UPP começam a jornada de trabalho. Quando acabam, voltam para o batalhão para entregar o equipamento. Isso significa que trabalham uma hora a mais que um policial normal. E por trás está a questão doutrinal que faz com que ainda pensem que mediação de conflito é policiamento de segunda divisão.
Eles não se sentem respeitados.
Exatamente. Eles se sentem desrespeitados pela comunidade e desvalorizados pelo policial do batalhão, que o chama de smurfete, de smurf. É uma imagem muito danosa, infantiliza o policial da UPP, faz com que pareça uma coisa de brincadeira. Eles aprenderam, inclusive antes de entrar para a instituição, que polícia é para prender bandido e trocar tiro. Então, se sentem fazendo outra coisa que não é polícia.
A relação das UPPs com as comunidades não parece muito boa, por causa do repúdio à ideia de pacificação, das restrições ao lazer. Isso pode levar moradores a pensar: 'Era melhor na época dos traficantes'?
Tem jovens que pensam exatamente isso. O que a gente espera é que haja uma negociação porque outro risco é o legalismo extremo. Por exemplo, a suposta lei do silêncio. Essa lei não é aplicada no resto da cidade com o mesmo rigor. As pessoas que nunca tiveram nenhum limite legal agora sentem que o limite delas é muito mais rigoroso que o de um cidadão comum. Propomos à polícia que se façam assembleias em que as pessoas discutam ou votem qual vai ser o limite do samba e do funk na sexta à noite, e que a polícia aplique a decisão da comunidade. A polícia fica muito mais legitimada, sem o ônus de tomar decisões de forma paternalista e de ser rejeitada por quem não gosta dessa restrição.
Esse paternalismo da polícia transparece muito na pesquisa. Ela assume um papel
que não é dela?
Não deveria ser. A isso se junta a tradição autoritária da polícia e a existência do que chamamos de projeto moral. Muitos policiais querem acabar com o funk, com o proibidão (funk de exaltação ao crime), querem que a criança tenha cabelo curto. Por outro lado existe a demanda da própria comunidade por essa figura forte, de dono do morro, que resolve as coisas. Essas demandas confluem para fortalecer o papel paternal.
Como é a relação dos policiais da UPP
com os moradores das comunidades?
Em algumas comunidades é boa, em muitas é tensa. No Batam, por exemplo, é boa. Ali os policiais levam os filhos para as festas na comunidade. Em Fallet/Fogueteiro/Coroa, é péssima. Fallet/Fogueteiro/Coroa tem bastante corrupção policial, um tráfico tradicional mais familiar e, portanto, uma rejeição forte da comunidade em relação à polícia. Fiz um patrulhamento com os policiais lá. Os garotos gritam: 'UPP vai morrer', e fazem pichação... É um ambiente extremamente hostil. Aí os policiais vão patrulhando com fuzil na ponta... Há muitas situações diferentes. Contudo, é melhor do que era antes. Porque tem muito menos tiroteio, quase não tem morte.
Apenas uma UPP, no Jardim Batam, é em área de milícia. A que atribuir essa lacuna, já que as milícias estão se espalhando pelo Rio, e a concentração do programa é na zona sul e em torno do Maracanã?
Há muitas razões por trás disso. Acho que nunca pensaram o projeto para milícia. Mas também não precisa ser nenhum gênio da sociologia nem da geografia para ver que evidentemente estão privilegiando áreas com uma população de classe média alta, áreas turísticas, que obviamente têm a ver com o projeto de megaeventos. Não fosse o Maracanã, a Tijuca não teria esse privilégio. O problema que se coloca é que, com esse nível de investimento em policiais, é impossível cobrir o conjunto do Estado.
Na sua avaliação, nos níveis atuais,
o projeto não pode ser reproduzido
em todo o Estado?
Não pode. É impossível. O número de policiais militares por habitantes no Rio é hoje de 2,3 para cada mil habitantes, próximo do nível padrão das Nações Unidas, de 3 por mil. Nas UPPs, há 18/19 PMs para cada mil habitantes. Então, não é possível multiplicar a polícia por oito, por nove.
Na escolha dos lugares para as UPPs,
houve, em sua opinião, preocupação com
visibilidade, com marketing?
Com certeza. Se as classes médias altas sentem que o projeto é em detrimento delas, o projeto pode entrar em crise. Então acho que há motivos menos louváveis, que são essa visibilidade, a mídia. E a visibilidade é internacional. Então há uma lógica política clara. Parte dela é compreensível e parte é pensando em termos eleitorais. Se o projeto tivesse começado na Baixada, de longe a região mais violenta do Estado, provavelmente hoje não teria esse nível de apoio. Então, pelo menos a zona sul e a zona central teriam de ser contempladas. O que me parece mais preocupante é que até hoje só contemplamos isso e pouco mais.
O projeto é prisioneiro dessa lógica?
Acho que é. Sem proteger os interesses dessas áreas nobres, corre-se o risco de perder a sustentação geral.
A pesquisa também constatou, por métodos estatísticos, que as UPPs têm poupado vidas. De quanto foi essa redução?
De meia vida por mês, por comunidade.
A cada dois meses, uma pessoa deixou
de ter morte violenta em cada comunidade com UPP, é isso?
Isso. Agora, no entorno é mais difícil de estimar. Não é pouco não. Hoje são 20 e tantas UPPs, multiplique por 12 meses. Você vai ver que estamos falando de 400, 500 vidas por ano sendo salvas, fora o efeito no entorno, que vai na mesma direção. E a violência tem um efeito inercial muito forte. Quando as pessoas matam, acabam também sendo mortas. Quando você começa a diminuir essa violência, isso acaba gerando mecanismos que diminuem outros fatos violentos. A gente acha que parece pouco, mas na verdade não é não.