NONA VARA CÍVEL CENTRAL DA CAPITAL
Processo n. 000.00.563936-0 (controle n. 1199/2000)
V I S T O S.
ANTONIO CARLOS ALVES DE MELLO move ação de indenização por dano moral contra EMPRESA JORNALÍSTICA DIÁRIO POPULAR S/A. É funcionário público estadual, exercendo as funções de agente policiais desde 1988, estando atualmente lotado junto à Delegacia de Polícia de Itaquaquecetuba. Alega que o referido jornal, em sua edição de 06 de abril de 2000 publicou uma relação de 253 policiais que estariam envolvidos com o crime organizado, conforme lista em poder da CPI que investigava tal fato na Assembléia Legislativa estadual. A manchete foi essa: “CPI do Tráfico tem acusações contra 253 policiais paulistas” foram publicados 253 nomes. O nome do autor foi citado também nos seguintes termos: “Antonio Alves de Melo, investigador da cidade de Suzano, por revender drogas apreendidas e carros roubados e receber propinas de bicheiros e de zona de prostituição”. A notícia ainda dizia que as denúncias contra todos os policiais tinham sido recebidas pela Ouvidoria da Polícia nos anos de 1998 e 1999. O autor ainda informa que a matéria foi assinada pelo jornalista Josmar Jozino, contra quem pretende oferecer representação criminal. O autor, no desempenho de suas funções, recebeu Diploma de Honra ao Mérito, elogios de seus superiores e Honra ao Mérito da Câmara Municipal de Mogi das Cruzes, Moção de Aplauso da Câmara Municipal de Suzano. Num desses diplomas ainda consta que o autor é detestado por aqueles ligados ao tráfico e comercialização de droga, onde atua. Em 22 de abril de 1999 recebeu Moção de Aplauso da Câmara Municipal de Suzano. Em 19 de novembro de 1993 foi indicado para concorrer ao título de policial do ano. Assim, considerando tudo isso, tem que a informação veiculada é falsa, sendo que não tem e nunca teve qualquer envolvimento com Alex Smokow, nunca revendeu drogas, carros roubados ou recebeu propinas de bicheiros ou prostitutas. Assim, ocorreu abuso no exercício da liberdade de informar. Ainda citando a notícia, consta que somente 14 denúncias foram acolhidas parcialmente. Assim, somente cinco por cento delas teriam sido parcialmente acolhidas. Não é dito o que ocorreu no tocante às demais, criticando o autor essa forma de agir do jornal. Ele deveria ter agido de forma a não colocar pessoas inocentes em posições constrangedoras. Isso não constitui o dever de informar. Relata a repercussão negativa da matéria, posto que todos os entrevistados pelo jornal manifestaram-se favoráveis ao afastamento imediato dos policiais mencionados na lista. Também mencionada que a divulgação da lista irritou o Ouvidor da Polícia. Assim, citando doutrina e jurisprudência, pediu o pagamento de danos morais no montante de mil salários mínimos, incidindo juros compostos desde a data da publicação. Juntou documentos (fls. 26/91).
Citado (fls. 93), o requerido ofereceu contestação (fls. 111/140), com documentos (fls. 96/109, 141/148). Preliminarmente, pediu que seja reconhecida a conexão entre o presente feito e outro em que uma outra pessoa também move contra o requerido. No mérito, diz que a publicação em questão não afirma a veracidade dos fatos mencionados na lista. Não fosse o destaque dado pelo autor ao seu nome, seria praticamente impossível identifica-lo entre todos os mencionados, mais de duzentos. Afirma que tal lista já vinha circulando pelos órgãos da Administração, sendo que estava de posse da Ouvidoria da Polícia e foi posteriormente encaminhada para a CPI da Assembléia Legislativa. Também informa que tal lista já estava em poder do Procurador Geral de Justiça do Estado. Assim, a lista não foi obra e arte da requerida, tendo sido literalmente reproduzida e divulgada em conjunto com matéria que revela isenção de ânimo. Também afirma que, sendo o autor de Itaquaquecetuba, não se pode afirmar categoricamente que ele é a pessoa mencionada na mesma, que é policial de Suzano. A pessoa mencionada na lista não tem o mesmo nome completo do autor. Salienta que a CPI é uma comissão de inquérito, ou seja, está apurando fatos, e não condenando quem quer que seja. Cita julgados em defesa de sua posição, bem como doutrina. Atacou o pedido de indenização, bem como o valor pleiteado, devendo ser evitado o enriquecimento sem causa.
Foi oferecida réplica (fls. 150/168). A requerida pediu por provas (fls. 170/171), reiterando o pedido de apreciação da preliminar de conexão e juntando documentos (fls. 172/175). O autor pediu por provas (fls. 177). A requerida juntou mais documentos (fls. 185/187). Foi proferida decisão a fls. 193/194, rechaçando o pedido de conexão e designando audiência de tentativa de conciliação. A requerida ingressou com recurso de agravo contra a decisão (fls. 195/208, 210/224), devidamente informado a fls. 226/227.
É o relatório. D E C I D O.
Passo a decidir o presente feito tal como se encontra, não havendo necessidade de se aguardar por audiência de tentativa de conciliação ou mesmo de se produzir provas. O necessário para a decisão já está nos autos.
Em primeiro lugar, cabe dizer que uma imprensa livre é fundamental em qualquer nação civilizada. Uma imprensa que publique fatos sem temor, e que seja respeitada pelos governantes pela sua independência, ajuda a formar o conceito do que se chama país civilizado. Infelizmente, por razões outras, muitos órgãos de imprensa nacional deixam de cumprir seu papel em diversas ocasiões, preferindo a superficialidade à investigação, a leviandade ao realmente importante.
É o caso de se trazer algumas citações sobre liberdade e imprensa:
“O homem está condenado a ser livre” (Jean Paul Sartre, O ser e o nada)
“A good nation, I suppose, is a nation talking to itself” (Arthur Miller, 26 de novembro de 1961).
Muitas outras podem ser trazidas, mas é o caso de se lembrar que a imprensa é apontada como sendo o quarto poder, numa clara referência aos outros três, vindos da distinção clássica de Montesquieu, da repartição dos poderes. Assim como os outros três fiscalizam-se mutuamente, a imprensa também fiscaliza e é fiscalizada pelos outros, sendo o Judiciário, naturalmente, sempre provocado, como neste caso, para dizer se, nesta ou naquela situação houve violação da liberdade de imprensa.
Como é sabido, existe uma CPI do Crime Organizado na Assembléia Legislativa paulista que, sem grande alarde, vai produzindo excelentes frutos. Com mais alarde e frutos talvez desproporcionais a tudo isso, existiu uma CPI do mesmo tipo no Congresso Nacional. Assim, ao tempo da publicação mencionada, havia grande afã no sentido de se apurar grandes esquemas de crime organizado, investigando-se até de forma atabalhoada. Vale dizer que a atividade policial está sempre sob o crivo das Corregedorias internas; da Ouvidoria da Polícia, que nada mais faz que receber denúncias e repassa-las às primeiras para a competente investigação; do Ministério Público; do Judiciário e, last but not least, da imprensa. Assim, o autor está acostumado com esse tipo de fiscalização, apesar dos documentos por ele juntados dando conta de diversos casos em que ele atuou com sucesso, sendo isso alvo de notícia na imprensa local.
A notícia atacada pelo autor veio na capa da edição do dia 06 de abril de 2000, uma quinta feira. Tinha a seguinte manchete: “CPI do Tráfico tem acusações contra 253 policiais paulistas”. O texto seguia assim: “Deputados federais e estaduais da CPI do Narcotráfico receberam da Ouvidoria da Polícia uma lista com acusações contra 253 policiais civis e militares denunciados por envolvimento com tráfico de drogas. A mesma relação é do conhecimento da Secretaria da Segurança Pública desde 1999. Entre as denúncias estão casos de um investigador e de um carcereiro que faziam tráfico atrás de uma escola na Zona Norte e também de policiais que apreendiam drogas de traficantes e vendiam para outros.PÁGINA
Tem razão o requerido quando afirma que se trata de denúncias em fase de apuração e que muitos dos nomes fornecidos estavam incompletos. Não interessa quem forneceu a lista para o jornal. A Ouvidoria e a CPI negaram. Fato é que o jornal tem o direito de assegurar o sigilo de fonte assegurado pela Constituição Federal. Assim, não é o caso de se perder mais tempo nesse ponto, que vai levar a lugar nenhum. De qualquer forma, parece certo que diversos outros órgãos já tinham essa lista e apurações estavam sendo feitas.
O nome do autor foi apontado na publicação de forma incompleta, sendo que o jornal até traz impugnação a respeito de sua real identidade. Ora, faltou somente o “Carlos” do nome do autor que, no entanto, tem o apelido de Toninho, ficando claro que prevalece o prenome “Antonio”. No tocante à cidade em que trabalha existem divergências, mas está claro que, em se tratando de cidades próximas, isso tem pouca diferença.
De qualquer forma, observo que ficou bem claro que o jornal apenas expôs fatos, com animus narrandi, e deixando claro que os nomes estão sendo apurados. Claro que, repercutindo o fato, entre pessoas desinformadas dos direitos mais elementares, colhem-se opiniões como a relativa à necessidade do afastamento de todos os mencionados. Ora, 253 policiais é um bom número. Afastar todos eles traria grande prejuízo para o normal andamento dos trabalhos policiais. Repetindo, no entanto, ficou claro que o jornal somente deu divulgação a lista que já era conhecida em outras esferas e essa lista foi publicada. Os nomes foram colocados de forma diminuta, sendo até o caso de se indagar qual foi o número de leitores da lista. Muitas pessoas lêem somente o que aparece na manchete ou nas primeiras linhas. Assim, é norma de redação em muitos jornais que os principais fatos venham logo nas primeiras linhas, sendo colocados os de menor importância mais abaixo, à medida em que o texto jornalístico vai se desenvolvendo.
O autor, apesar da farta documentação juntada, deve estar preparado para fatos assim. Infelizmente, assim como os prêmio e honrarias fazem parte da profissão dele, denúncias e acusações também fazem. Qualquer policial sabe disso. Raro é o policial que passou pela carreira sem ter que responder a alguma insinuação ou mesmo investigação preliminar. Quem nunca errou nunca fez nada, já disse alguém famoso. Se alguém nunca respondeu ou teve que se preocupar com algo assim, certamente nunca fez nada de útil. Tomo a liberdade de transcreve na íntegra, destacando o trecho que entendo mais relevante, o artigo que escrevi para a Tribunal da Magistratura, jornal da Associação Paulista de Magistrados, e que foi publicado em dezembro do ano passado:
BOLA DA VEZ?
Volta e meia alguém afirma que as críticas dirigidas ao Judiciário existem porque este é a “bola da vez”.
A primeira vez que ouvi isto foi no começo de 1994. Recordo-me que, logo no primeiro dia do ano, um promotor disse que 1992 tinha sido o ano do Executivo (impeachment de Collor); 1993 do Legislativo (CPI do Orçamento); 1994 seria o ano do Judiciário.
O tempo passou e não deu razão a tal prognóstico. A CPI do Judiciário foi implantada muito depois. Segundo disse o senador Roberto Freire no encontro dos magistrados no ano passado, em Gramado/RS, a CPI somente aconteceu porque nenhuma voz forte dentro do STF se levantou. A CPI acabou servindo mais como palco para o presidente do Senado e para a colheita de provas que acabaram culminando na cassação de um senador. De resto, todos os fatos que serviram de motivo para a criação da CPI já tinham sido ou estavam sendo objeto de outras investigações dentro do próprio Judiciário.
Ainda assim afirmam que o Judiciário é atacado por ser a “bola da vez”. Será que, passados seis anos, continua a ocorrer esse tipo de perseguição? Acredito que não. Não podemos esquecer que em 1999 o Executivo e o Legislativo da cidade de São Paulo estiveram sob constante foco da mídia, que somente diminuiu por causa do processo eleitoral. Diversos vereadores foram investigados; um deles, então já deputado estadual, foi cassado; um outro está preso e o prefeito da cidade chegou até a ser afastado por decisão judicial. Posteriormente, tudo isso culminou em amplo processo de renovação da Câmara Municipal, com grande vitória do partido mais identificado com a moralização do Poder Legislativo.
O Executivo federal também vem sendo alvo de críticas constantes. Não podemos esquecer de diversos fatos: o escândalo da denúncia da compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição, as críticas ao modelo das privatizações, as muitas viagens de ministros usando jatos da FAB, além de diversas outras denúncias que somente não são investigadas porque a Presidência da República conta com sólido apoio dos órgãos de comunicação, entre outros.
O Poder Legislativo também sofreu, como já mencionado anteriormente, sendo que, mesmo no curso da CPI do Judiciário, tivemos a cassação de senador considerado quase como intocável. Referido senador, a quem restavam seis anos de mandato, vale lembrar, ainda não tinha completado o primeiro terço do mesmo! Seus planos incluíam a disputa do governo distrital em 2002. Diversas outras denúncias foram feitas.
O Poder Judiciário não pode se pretender acima da crítica que vem da imprensa ou que é realizada por meio dela. Aliás, é bom que esta exista para que, olhando-a com humildade, possamos tentar melhorar o nosso serviço. Somente quem é parte entende a lentidão existente em nosso sistema processual e pode sugerir formas de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.
O Judiciário precisa perder o medo da imprensa. Eu ainda não era juiz, mas já lia os artigos do Dr. José Renato Nalini dizendo que o magistrado deveria receber repórteres e jornalistas. Às vezes percebemos que não houve qualquer evolução. Entrevistas são negadas e, por essa razão, prevalece uma visão equivocada dos fatos. A experiência demonstra que ser acessível à imprensa e explicar com paciência o nosso sistema judicial faz com que muitas informações sejam divulgadas de forma correta. O ganho não é só do Judiciário. É de toda a coletividade.
Aliás, com a recente Lei da Responsabilidade Fiscal (Lei complementar 101), todos os poderes do Estado serão igualmente afetados pelo dever de serem eficientes, já consagrado na Constituição Federal, em seu artigo 37, caput. Foi criado o dever de todos os poderes prestarem contas da gestão dos seus recursos, o que deve ser feito por meio da internet, inclusive. Assim, qualquer pessoa com acesso à rede e um mínimo de conhecimento sobre qualquer esfera de governo (isso abrangendo os três poderes), poderá saber como o dinheiro público foi gasto e, mais importante, por meio dos canais já estabelecidos, sem qualquer necessidade de se recorrer à “gestão participativa”, poderá opinar. Enfim, estamos diante de uma revolução. Na mesma medida em que os outros poderes foram criticados por gastos fora de padrão, o Poder Judiciário também poderá ser criticado. Aliás, é oportuno lembrar que os congressistas podem tomar conhecimento da execução orçamentária por meio do sistema integrado de controle de gastos do governo. Não poucas vezes este foi utilizado por ONGs e órgãos da imprensa, propiciando reveladoras denúncias de desvios e irregularidades. Agora, se tudo for feito como manda a lei, teremos maiores meios e facilidades para exercer esse tipo de controle.
É preciso compreender que na sociedade democrática moderna o exercício da crítica sobre a atividade de todo cidadão público é uma constante. Recentemente, uma juíza de Boston passou a ser duramente criticada e até mesmo sofrer pedido de afastamento (ainda não decidido), por causa de uma decisão em matéria criminal. Um juiz canadense teve que pedir desculpas por causa de um comentário feito em audiência criminal. O chefe do Poder Judiciário de New Hampshire está sob investigação. Tudo isso está acontecendo na América do Norte, com instituições políticas consolidadas e funcionando normalmente. O próprio presidente dos Estados Unidos foi alvo de longa investigação, paga com dinheiro público, que culminou em processo de impeachment por motivo que, em outros países, foi ridicularizado (ao final, como se sabe, ele foi absolvido). As críticas feitas no Brasil não constituem fato isolado, portanto.
Assim como as empresas se preparam para as demandas judiciais, para as inquirições de órgãos de defesa do consumidor e do Ministério Público, o Judiciário precisa conviver com o saudável exercício da crítica e da autocrítica. É necessário parar de ver tudo isso como maquinação da imprensa. Fato é que a imprensa tem diversas motivações para as suas atitudes e, por isso, é mais do que saudável procurar informação. A leitura de livros sobre a imprensa brasileira, como a “A regra do Jogo”, de Cláudio Abramo, ou “Minha razão de viver”, de Samuel Wainer, para ficar somente em duas obras clássicas de grandes jornalistas já falecidos, é mais do que necessária. Existem diversas publicações que praticam saudável crítica sobre aquilo que é publicado em outros meios, como a revista “Caros Amigos”, para citar só uma. Tudo isso nos alerta para aquilo que está acontecendo no Brasil e dentro dos meios de comunicação. Cito Cláudio Abramo, no entanto, para que não nos esqueçamos o que é um jornal:
“O jornal serve para se usar no dia: ele dá algumas informações úteis. Não se vai ler um trabalho aprofundado no jornal porque será superficial, embora o jornal deva se permitir a ter críticas agudas e pontuais sobre certos fatos ocorrentes - o que também está sendo eliminado hoje em dia”. (obra citada, 1a. edição, 1988, pg. 232, Companhia das Letras, S. Paulo)
Assim, esquecendo que somos ou fomos a “bola da vez”, o importante é ter a consciência de que vivemos em uma sociedade democrática e que o nosso trabalho será sempre objeto de críticas, como o é o trabalho dos parlamentares e membros do Executivo. O nosso trabalho deverá ser também o de prestar contas, que serão exigidas por todos. Parafraseando um dos evangelistas, devemos buscar primeiro o Reino de Deus e a sua Justiça e tudo mais nos será acrescentado.
Assim, relembrando que houve somente animus narrandi, e subscrevendo as palavras da fundamentação de sentença da 30a. Vara Cível Central, bem apropriadas, é o caso de se julgar improcedente o pedido inicial.
Ante o exposto, julgo improcedente o pedido inicial. Deixo de condenar o autor nas despesas decorrentes da sucumbência tendo em vista o fato de ser beneficiário de gratuidade processual. Transitada esta em julgado, diga a parte vencedora. Libere-se a pauta da audiência designada.
P.R.I.
São Paulo, 16 de fevereiro de 2001.
JOSÉ TADEU PICOLO ZANONI
Juiz de Direito
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