A percepção social da Justiça
18 de setembro de 2013 | 2h 02
ANÁLISE: Frederico de Almeida, é cientista político, coordenador de graduação da Direito GV - O Estado de S.Paulo
O discurso que associa o resultado da Ação Penal 470, o chamado mensalão, ao juízo definitivo que os brasileiros farão do Poder Judiciário sustenta que as possibilidades de absolvição ou de revisão das condenações já decididas pelo Supremo Tribunal Federal levariam ao descrédito da Justiça brasileira.
Na atual fase do julgamento, esse discurso buscou carona na crítica às instituições políticas das manifestações de junho e na ressaca da decisão recente da Câmara que não cassou o mandato de um deputado condenado pelo Supremo em outra ação.
O descrédito da população no Judiciário não é algo desprezível, e é constatado empiricamente por diversas pesquisas. Porém, esse sentimento não tem sua origem no julgamento da AP 470. O Índice de Confiança na Justiça, da Direito GV, vem constatando essa percepção social negativa desde muito antes do julgamento do mensalão. Desde a década de 1980 inúmeros estudos (como as Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios do IBGE de 1988 e 2009) têm embasado um preocupante diagnóstico de descrédito no Judiciário, considerado ineficiente na resolução de conflitos e na garantia de direitos dos cidadãos.
Não se pode ignorar o fato de que absolvições ou revisões benéficas aos réus em novo julgamento da AP 470 poderiam agravar essa percepção negativa. Mas o contrário seria verdadeiro? A condenação "exemplar" nessa ação aumentaria a credibilidade do Judiciário? Uma e outra coisa deveriam ser provadas, mas para isso não bastaria uma simples pesquisa de opinião nesta semana; seria preciso, ao contrário, compreender o impacto desse julgamento na lógica mais ampla em que se produz a percepção social da Justiça (o que só pode ser feito, por sua vez, em um esforço de análise que não atende ao tempo da exaltação política momentânea).
Passado o julgamento dessa ação, é preciso saber se o cidadão comum afetado pela morosidade judicial e pela falta de acesso à Justiça vai ao menos se lembrar de que houve um mensalão. É preciso, também, que os arautos da crise de hoje se lembrem, amanhã, do cidadão comum e dos problemas estruturais do Judiciário brasileiro.
Agora, o da Folha
MARCELO COELHO
A Justiça emplumada
Como um bom seriado, julgamento do mensalão teve astros, surpresas e momentos patéticos
Não haverá outra temporada. Ainda que tudo se estenda com novos recursos, do ponto de vista da teledramaturgia o grande seriado do mensalão chega a seu desfecho.
O roteirista não poderia ter sido mais perfeito. Reservar um empate de cinco a cinco para a última semana foi magistral; soube também introduzir novos personagens, tirar de cena os mais idosos, dar a cada um suas cenas de destaque.
E que personagens. Uma das coisas que mais me fascinaram, ao longo do julgamento, foi a diversidade humana dos membros do STF.
Mesmo num grupo tão homogêneo --todos juízes, todos mais ou menos da mesma idade e condição social--, havia de tudo.
Como em todo drama de alta qualidade, achei difícil tomar partido a favor de um ou outro. Entre Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, os defeitos e qualidade pessoais estavam a meu ver bem repartidos, e não consigo pensar mal de nenhum dos dois.
Lewandowski exagerou na sua defesa dos réus? Certamente, e por muitos momentos tive pena dele; ainda há poucos dias, teve um lance que não sei qualificar se de fofo ou de patético.
Ele queria provar, mais uma vez, que houve exagero quando o tribunal aumentou as penas de alguns réus.
"Tenho aqui um gráfico", dizia Lewandowski, "em 3D". Saiu de sua mesa uma folhinha de sulfite, mostrando colunas coloridas, que ele queria exibir ao círculo dos seus colegas. Uma aragem polar paralisou o seu gesto.
Quantas vezes senti isso em sala de aula... Eu buscava entre os alunos algum olhar receptivo a meu esforço de explicação. Não havia quem não o desviasse de mim.
Nem Toffoli se dispôs, naquela situação e em outras tantas, a sustentar o solitário esforço de Lewandowski. Havia matreirice nisso. O ministro mais contestado passou por todos esses meses sem se queimar nem um pouco.
De resto, quando lia seus votos ou dava algum palpite sobre o encaminhamento dos trabalhos, Toffoli soube jogar bem o jogo das leis, das normas, dos contrapesos. Nunca transmitiu aquela impressão de desespero que se associa a Lewandowski, por vezes mal assistido pelos próprios argumentos.
Ao mesmo tempo, não deixa de ser admirável a capacidade de Lewandowski de aceitar desculpas e de não partir, o que seria até possível, para a agressão física diante do "bullying" de Joaquim Barbosa.
Medo, talvez? Prefiro pensar em certa donzelice, a que não faltava cálculo. Vai saber se Lewandowski não se sente uma espécie de Quixote garantista, frente aos ogros punitivos que o combatem. Se for assim, teríamos um Quixote disfarçado em Dulcineia; era a parte ofendida, o alvo das ameaças; nenhum cavaleiro se apressou, todavia, para salvá-lo do perigo.
Surgiu Barroso, é verdade, já no final da história. Estava, entretanto, no papel do trovador, dedilhando o alaúde dos fatos consumados. Mas sua voz canora não se contentou com o papel de acompanhante; quis chamar a atenção, quis o estrelato televisivo, e aí desafinou.
O tenor do espetáculo, o Pavarotti da acusação, foi Luiz Fux. Iniciou com aquilo que um crítico de ópera italiano qualificou de "una vocalità prorrompente"; verdade que, nas horas mais embrulhadas da dosimetria, contentou-se em seguir o relator.
Sim, Joaquim Barbosa. Foi decisivo e inteligente na preparação do processo. Tendo conformado todo o caso a uma narrativa cronológica e inteligível, os seus tropeços de argumentação (eventuais) e de compostura (inúmeros, dispensáveis, horríveis) importaram menos.
O racismo está em toda parte. Gente de esquerda criticou Barbosa por ser "ressentido". Ora, ressentido por quê? Seria o adorável Ayres Britto ressentido porque nasceu em Sergipe? Outro, por ter sido gordinho na infância? Sendo negro, este o raciocínio, haveria de querer alguma vingança...
Nessa questão dos estereótipos, o mérito vai para as mulheres do tribunal. Rosa Weber e Cármen Lúcia tiveram opiniões distintas em alguns pontos, mas eram confiabilíssimas. Rosa foi talvez a única a não achar as contas de somar e diminuir da dosimetria uma tarefa manual demais para o próprio talento.
As duas, ao lado de um Teori Zavascki ronceiro e quietarrão, deram o exemplo da falta de vaidade. Na maior parte das espécies, afinal, é o macho quem se empluma, quem se arma de bicos, presas, esporões.
Homens, somos todos crianças, meninos no pátio do recreio. Pelo menos, a Justiça tem forma de mulher; há sabedoria nessa antiga crença.
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