24.11.15

Fosfoetanolamina -indeferimento de inicial

Está muito duro, complicado, colocar textos na página de sentenças. Assim, compartilho essa aqui. Desde sexta-feira já foram 3 casos.
Essa sentença tem 98% do Bruno Miano.

Defiro a gratuidade. Anote-se.
A autora pede o fornecimento da substância fosfoetanolamina sintética, que foi alvo recente de grande, enorme controvérsia e decisões de variados tribunais. A inicial comete um grande erro ao dizer que o resultado da substância é eficiente. Segundo relatos, assim seria. A substância NÃO  foi aprovada pela ANVISA e, por essa razão somente, já seria possível o indeferimento da inicial.
A fosfoetanolamina sintética seria um milagroso remédio para a cura de todo e qualquer tipo de câncer. .
Pesem tais ponderações, que têm sido feitas nos meios de comunicação, e pese ainda mais o desespero das famílias e dos pacientes, mas inexiste comprovação científica dessa substância, que nem mesmo de remédio pode ser chamada.
Note-se que sequer registro na ANVISA essa substância possui. E não é caso de aplicação da exceção criada pelo art. 24 da Lei 6360/76. 
Tal artigo permite a importação de remédios, em casos graves, ainda que não registrados no Brasil. Porém são registrados em seu país de origem; logo, possuem alguma eficácia comprovada e já foram testados.
Aqui, ao revés, a fosfoetanolamina sintética sequer chegou a ser testada, nos modos padronizados para que possa-se dizer que ela cura. Assim, também não se pode aceitar o afirmado no item 2 de fls. 02, ou seja, que deve prevalecer o interesse manifestado pelo enfermo. Aliás, se for assim, para que ir ao médico?
Assim, não há qualquer ilegalidade na Portaria IQSC 1389/2014, que suspendeu tal experimento e proibiu sua produção.
A inicial diz que existe decisão de ministro do STF autorizando o fornecimento do medicamento. Num segundo momento, segundo notícias da imprensa, o mesmo ministro, disse que a decisão dele foi somente para o caso concreto, não pretendendo ter caráter geral. Depois disso, veio decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vedando a concessão do mesmo. A inicial tem data de 13/11/15 (apesar de somente distribuída hoje, uma semana depois). A decisão mencionada data de 11/11/15 (http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2015/11/desembargadores-do-tj-suspendem-entrega-da-fosfoetanolamina-sintetica.Html, em 20/11/15). Diz o primeiro parágrafo da notícia retro mencionada:
"O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou na sessão realizada nesta quarta-feira (11) a suspensão do fornecimento da fosfoetanolamina sintética, distribuída pela Universidade de São Paulo (USP) para pacientes com câncer mediante liminares."
E ainda diz:
"É irresponsável a liberação de substância sintetizada em laboratório, que não é medicamento aprovado e que vem sendo utilizada sem um mínimo de rigor científico e sem critério por pacientes de câncer que relatam melhora genérica em seus quadros clínicos, porque não foram realizadas pesquisas exaurientes que permitam estabelecer uma correlação segura e indubitável entre seu uso e a hipotética evolução relatada”, argumentou o desembargador Sérgio Rui ao julgar o agravo"

O fato é que o Judiciário não pode, e nem deve, intrometer-se a todo instante nas searas do Executivo, fazendo exame dos juízos de conveniência e de oportunidade, conteúdos de todo ato discricionário. Sobre o assunto, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, a saber:
“O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, em nosso ordenamento jurídico, não permite que o Executivo seja substituído, na execução das atividades de administração, pelo Poder Judiciário. Este, no exercício de sua função constitucional, exerce ato administrativo. Nunca, porém, no concernente à execução de atos de administração, haja vista que, no particular, deve ser respeitada a autonomia do Executivo em definir, no uso de sua atividade discricionária, da conveniência e oportunidade de atuar, tudo vinculado à previsão orçamentária e ao programa de governo.” (STJ, 1ª T., rel. Min. José Delgado, REsp. 176.310-RS, j. 16.6.1998, v.u.)
E é exatamente isso que ocorreria, se o Judiciário desconsiderasse a eficácia de tal Portaria, calcada em parâmetros científicos que definem o que pode ser produzido como remédio, ou não.
Repise-se esse específico ponto, com as palavras de SEABRA FAGUNDES, verbis:
"Ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade. Este é o limite do controle, quanto à extensão.
O mérito está no sentido político do ato administrativo. É o sentido dele em função das normas da boa administração. Ou, noutras palavras: é o seu sentido como procedimento que atende ao interesse público, e, ao mesmo tempo, o ajusta aos interesses privados, que toda medida administrativa tem de levar em conta. Por isso, exprime sempre um juízo comparativo." (O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 3ª ed. RJ: Forense, p. 167)
Assim, não cabe ao Judiciário ''fazer pouco' das regras administrativas que definem o procedimento de pesquisa e produção de medicamentos, apenas para entregar uma substância não testada, sem eficácia comprovada, que promete o combate a qualquer câncer (pouco séria, pois). 
Não é, aqui, caso de ponderação a favor do direito à vida, porque nada evidencia que ele será preservado com essa substância; ao revés, os indícios são de que a fosfoetanolamina sintética, hoje, não passa de algo com efeito placebo.
Por isso, incabível a aplicação dos escassos recursos públicos para o fornecimento dessa substância, cuja produção está proibida. Nesse aspecto, totalmente incorreta a inicial ao dizer que o fornecimento não tem custo para o Estado. Como assim? Cai do céu? Evidente que tem custo e a manutenção de decisões assim geraria enorme prejuízo e problemas para a Universidade de São Paulo
Não pode o Magistrado agir ao arrepio da lei, por compaixão.
MILAN KUNDERA, em seu 'A insustentável leveza do ser', bem define esse sentimento, tão distante da imparcialidade:
“Todas as línguas derivadas do latim formam a palavra 'compaixão' com o prefixo com  e a raiz passio, que originariamente significa 'sofrimento'. Em outras línguas, por exemplo em tcheco, em polonês, em alemão, em sueco, essa palavra se traduz por um substantivo formado com um prefixo equivalente seguido da palavra 'sentimento' (em tcheco: soucit; em polonês: wspol-czucie; em alemão: Mitgefühl; em sueco: med-känsla).
Nas línguas derivadas do latim, a palavra compaixão significa que não se pode olhar o sofrimento do próximo com o coração frio, em outras palavras: sentimos simpatia por quem sofre. (...)” (ob. cit., Record/Altaya, p. 25)
E, em que pese a compaixão nutrida por quem tem câncer e luta pela preservação da vida, não é lícito ao Juiz agir imbuído com base nesse sentimento.
Do Poder Judiciário não se espera outra coisa senão Justiça. Sempre presentes as palavras de GOFFREDO TELLES JÚNIOR, que em sua alta sabedoria, vaticina:
“Ah, a caridade! A caridade é, sem dúvida, virtude mais alta do que a da justiça.
Acontece, porém, que a justiça é mais urgente do que a caridade.
Primeiro, a justiça: dê-se aos outros o que lhes pertence. Isto é fundamental. Depois, se se quiser e se houver com quê, faça-se a caridade.
Pode haver justiça sem caridade, mas não há caridade contra a justiça. E é ato de injustiça dar a alguém o que é devido a outro. Tal ato, em verdade, não pode ser tido como ato de caridade, porque, evidentemente, uma pessoa só pode fazer caridade com o que é seu. Não pratica ato de caridade quem dá a alguém o que pertence a terceiro.
O juiz que quiser praticar a caridade poderá fazê-lo, sim, mas só poderá fazê-lo com o que é seu, com o que é de sua propriedade pessoal. Pode fazê-lo, mas fora dos autos.
Que esdrúxula caridade é essa praticada pelo juiz do Direito Alternativo! Que caridade é essa, feita pelo juiz com o que não pertence ao juiz? Não se pode fazer caridade com o que é dos outros. Que caridade é essa, com dano de terceiros?” ('Estudos', ed. Juarez de Oliveira, p. 192)
Dessa forma, conquanto se compreenda a dor sentida pelos doentes, não é possível lhes dar algo em desacordo com as regras científicas e médicas, em prejuízo do Erário.
Um outro fundamento para o indeferimento do pedido, já utilizado antes por este magistrado é a falta de prescrição médica. Medicamento nenhum pode ser concedido sem prescrição médica. Neste caso, além da falta de prescrição, temos todos os outros elencados acima.
Ante o exposto, julgo extinto o pedido inicial, sem resolução do mérito, pela impossibilidade jurídica do pedido. Não é o caso de condenar em custas eis que não foi formada a relação processual. Transitada em julgado, nada sendo pedido, arquivem-se os autos.

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