DA Folha de São Paulo
HÉLIO SCHWARTSMAN
Apartheid da dor
SÃO PAULO - Muito se fala sobre a desigualdade econômica entre nações e mesmo sobre o acesso assimétrico dos países a recursos essenciais como água, alimentos, petróleo etc. Muito menos mencionada, mas não menos importante, é a diferença que existe na distribuição de analgésicos. O que se afigura aqui é um verdadeiro apartheid da dor.
O problema apareceu tangencialmente na reportagem que a Folha publicou ontem sobre cuidados paliativos. Ali, a médica Ana Claudia Arantes lembra que a média mundial de consumo de morfina é de 6,5 mg por habitante por ano e que, no Brasil, esse número é de apenas 1,5 mg. Na Áustria, campeã mundial de uso lícito do opioide, a cifra vai a 100 mg. A menos que imaginemos que os brasileiros sejam 67 vezes mais resistentes à dor do que os austríacos ou que os médicos do país alpino prescrevam drogas perigosamente perto da irresponsabilidade, é quase forçoso concluir que o brasileiro está sofrendo desnecessariamente.
Embora tenha consumo abaixo da média mundial, o Brasil não é atípico entre países em desenvolvimento. Segundo o Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes, ligado à ONU, 5,5 bilhões de terráqueos, cerca de 75% da população mundial, vivem em países com pouco ou nenhum acesso a medicamentos para controle de dores moderadas e severas; 92% de toda a morfina produzida no mundo é consumida por apenas 17% da população global, que habita nações concentradas na América do Norte, Oceania e Europa Ocidental.
É verdade que existem regiões com estrutura de saúde tão precária que nem haveria como distribuir opioides, mas esse não é o caso do Brasil. Nosso problema é uma combinação de má formação dos médicos –que estudam superficialmente analgesia e cuidados paliativos– com burocracia paranoica, que acha mais importante evitar que viciados consigam drogas do que assegurar que pacientes legítimos não sintam dor.
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