Nas últimas décadas tornou-se comum que juízes e advogados opinem mais sobre aspectos práticos e profissionais de suas profissões fora do ambiente acadêmico. Vinte anos atrás, na página jurídica do Estadão era possível ler artigos do hoje desembargador José Renato Nalini falando de aspectos profissionais.
Competem eles com os tradicionais tratadistas e acadêmicos que sempre cuidaram do assunto na Universidade. Com a internet, tudo o que era discutido e tratado nas páginas de jornal passou para a rede.
Assim, pudemos ler no último domingo o artigo do Dr. Vladimir Passos de Freitas, em que falou do juiz ingênuo. Falou que as pessoas ingênuas "vêem em todos pessoas maravilhosas e seguem crendo piamente no ser humano". Por vezes, um tipo assim vira juiz. Associou isso aos mais novos, mas também abriu margem para incluir sexagenários "que permanecem impolutamente puros, em estágio de pré-adolescência, porque durante toda a vida protegeram-se das investidas da realidade"
O artigo confunde ingenuidade com imaturidade. Apesar de em certos momentos parecer que não, em outros volta para a confusão.
Por outro lado, o artigo expressa uma duríssima avaliação sobre pessoas. Todos julgam. Todos julgamos nossos colegas, as notícias do dia. O jornalista julga a opinião de um político e decide se isso cabe no noticiário. O médico julga o seu paciente e avalia se diz ou não a verdade. O juiz é alguém que julga o fato, a situação, o processo, investido pelo Estado, de acordo com a lei e seguindo as normas processuais. Devido processo legal, contraditório, direito de recurso.
O autor do artigo julgou pessoas, de forma severa e áspera. Depois, expôs fatos, com base nos fatos expostos podemos concordar ou discordar dele.
Cita casos e dá exemplos que certamente foram vistos em algum momento na vida do autor. A mini biografia ao pé do artigo fala que ele foi presidente do Tribunal Regional Federal da 4a Região. Sim, e foi corregedor do mesmo tribunal antes disso. É fácil crer ou deduzir que os exemplos sejam de casos reais.
A minha crítica ao artigo é que, ao citar casos, e traçar o tipo do juiz ingênuo, esteja o autor confundindo ingenuidade (na visão dele) com imparcialidade, com vontade de acertar. Sim, porque o juiz tem vontade e empenho para acertar, para tentar distribuir o justo para cada um. Um juiz que, por vezes, defere uma indenização milionária pode ser alguém que, dentro da avaliação possível dos autos, deferiu um pedido formulado (sim, porque deferir mais que o pedido é julgar extra petita, fora do pedido e passível de anulação). Um juiz que saí às ruas em algum momento em diligência policial pode fazer isso por provocação do delegado ou até mesmo para coibir alguma ilegalidade. Um juiz que condena muito tem seu contraponto no juiz liberal.
Certamente o artigo em comento será lido em muitos lugares e a parte ficará feliz, pensando que o juiz que lhe deu ou negou alguma coisa é "ingênuo".
Mas é certo que se pensar no interesse geral é importante, por outro lado é necessário e indispensável não esquecer do direito de quem pede. As partes desejam um juiz imparcial, que não esteja influenciado somente pelo dito interesse coletivo. Aliás, ao Estado interessa que o Direito seja bem aplicado e por juízes imparciais.
O artigo também omite (nem sempre é possível considerar todas as situações) que as decisões judiciais comportam recurso. Assim, se o juiz foi pródigo numa decisão, isso pode ser combatido no recurso ao tribunal. Se este reformar a decisão, pode ser e é bem provável que isso sirva como material de reflexão para casos futuros. O juiz pode ser ingênuo ou estar errado, mas tem sempre o desejo de acertar e ser justo.
O artigo tece considerações sobre o juiz ingênuo na vida privada e sobre certas situações de risco. São válidas, úteis e necessárias, mas são advertências feitas nos cursos de iniciação funcional e repetidas com certa insistência. Pode ser que o autor tenha visto casos assim, mas também poderá dizer, por outro lado, que não constituem a regra.
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