5/2012
Dois artigos da Folha de hoje (16/5/12):
“A verdade da comissão
São bons os nomes escolhidos por Dilma Rousseff para compor a Comissão da Verdade. Ela conseguiu reunir personalidades com sólida reputação jurídica ou reconhecida militância na defesa dos direitos humanos e com baixo risco de atuar como radicais livres.
É preciso agora que eles definam o foco sobre o qual centrarão esforços. O mandato conferido pela lei 12.528, que criou a comissão, é amplo demais - abarca todas as "graves violações de direitos humanos" praticadas entre 1946 e 88 - e o tempo para concluí-lo - dois anos -, muito curto.
A ênfase, portanto, deve recair sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985). Aqui, é preciso, antes de mais nada, afastar a ideia de que as partes devem ser igualadas. Embora os militares gostem de dizer que travavam uma guerra contra grupos que pretendiam instalar uma ditadura comunista, a situação não chegou nem perto da de um conflito civil em que os dois lados se enfrentavam em igualdade de condições. Ainda que parte dos esquerdistas tenha pego em armas, eles eram, sob o prisma da lei, criminosos comuns protegidos pelas garantias fundamentais declaradas nas Constituições de 1946 e, depois, de 1967 -nenhuma das quais autoriza tortura ou execuções sumárias”
“Houve acordo para apurar esquerda, diz ex-ministro
A Comissão da Verdade, que será instalada hoje, colocou em contradição dois ex-ministros que participaram das negociações para a criação do órgão (…)
O ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, que deixou o cargo em 2011, disse que o acordo que viabilizou a criação da comissão previa que ações da esquerda armada também seriam investigadas (…)
Ele afirma que discutiu o tema com o então ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Paulo Vannuchi, e que ficou acertado que seriam apuradas violações de direitos humanos "em todos os aspectos".
‘A comissão não tem o objetivo de punir ninguém’, afirmou Jobim. ‘É um levantamento da memória, então tem que ouvir todo mundo’”
Para o direito, o que é discutido entre os políticos para que uma lei seja aprovada, não interessa. O que interessa é o texto da lei aprovada. No caso, a Lei 12.528/11 diz o seguinte:
“Art. 1o É criada (...) a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período (...) [de 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988] a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Art. 3o São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:
I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o;
II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;
III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;
IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos politicos (…);
V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;
VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e
VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.”
Repare que a lei em nenhum momento diz quem a Comissão deve investigar. Ela não foca em quem fez, mas no que foi feito. É partindo do que foi feito é que ela passa a investigar quem fez e por que fez. Logo, não há nenhum impedimento legal para que ela investigue os dois lados.
O que chamamos de comissão da verdade é algo novo no mundo jurídico e inspirado, em grande parte, pela iniciativa (bem sucedida) feita pela África do Sul depois do fim do apartheid.
A iniciativa sul-africana, por sua vez, foi inspirada pelos coroner’s courts que surgiram na Inglaterra por volta do ano 1066 (e que existem até hoje). E para entender essa novidade no Brasil, vale a pena tentarmos entender o que é um coroner’s court.
Os coroners, que são médicos ou juristas que investigam a identidade do morto e as circunstâncias de uma morte que não ocorra por causas naturais. Se a morte não tem causas naturais evidentes, ou é violenta ou a causa é desconhecida, eles podem proceder com autópsia (é o que os médicos legistas fazem no Brasil). E mais: se as circunstâncias da morte são controversas ou podem gerar lições para evitarem mortes similares no futuro, os coroners podem ordenar um jury inquest, que é um júri presidido por um juiz e composto por jurados leigos. A função desse jury é determinar a versão oficial para aquela morte, sem atribuir culpa ou pena. E é mais ou menos esse o objeto da Comissão da Verdade.
Boa parte da resistência a tal Comissão no Brasil ocorre porque é algo completamente novo para nós.
No Brasil, associamos julgamento com atribuição de culpa. Se você foi julgado, você é culpado ou não; e se for culpado, terá uma pena. Mas essas cortes/júris não são cortes no sentido de julgarem alguém. Elas não têm esse poder. Muito menos podem estabelecer penas. A função delas é apenas investigar as circunstâncias de morte quando essas circunstâncias são desconhecidas e, se necessário, gerar lições para o futuro. A ideia é trazer paz para a sociedade estabelecendo o que ocorreu de uma vez por todas. Isso é especialmente importante quando a morte envolve agentes estatais. A ideia é que, como essas cortes são formadas por pessoas comuns, elas não têm interesse de proteger ninguém, mas apenas descobrir a verdade dos fatos de forma imparcial. Em outras palavras, a versão oficial é determinada por representantes da sociedade e não por representantes do governo.
E é justamente isso que o artigo 1o da lei diz que ela existe “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.
“A verdade da comissão
São bons os nomes escolhidos por Dilma Rousseff para compor a Comissão da Verdade. Ela conseguiu reunir personalidades com sólida reputação jurídica ou reconhecida militância na defesa dos direitos humanos e com baixo risco de atuar como radicais livres.
É preciso agora que eles definam o foco sobre o qual centrarão esforços. O mandato conferido pela lei 12.528, que criou a comissão, é amplo demais - abarca todas as "graves violações de direitos humanos" praticadas entre 1946 e 88 - e o tempo para concluí-lo - dois anos -, muito curto.
A ênfase, portanto, deve recair sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985). Aqui, é preciso, antes de mais nada, afastar a ideia de que as partes devem ser igualadas. Embora os militares gostem de dizer que travavam uma guerra contra grupos que pretendiam instalar uma ditadura comunista, a situação não chegou nem perto da de um conflito civil em que os dois lados se enfrentavam em igualdade de condições. Ainda que parte dos esquerdistas tenha pego em armas, eles eram, sob o prisma da lei, criminosos comuns protegidos pelas garantias fundamentais declaradas nas Constituições de 1946 e, depois, de 1967 -nenhuma das quais autoriza tortura ou execuções sumárias”
“Houve acordo para apurar esquerda, diz ex-ministro
A Comissão da Verdade, que será instalada hoje, colocou em contradição dois ex-ministros que participaram das negociações para a criação do órgão (…)
O ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, que deixou o cargo em 2011, disse que o acordo que viabilizou a criação da comissão previa que ações da esquerda armada também seriam investigadas (…)
Ele afirma que discutiu o tema com o então ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Paulo Vannuchi, e que ficou acertado que seriam apuradas violações de direitos humanos "em todos os aspectos".
‘A comissão não tem o objetivo de punir ninguém’, afirmou Jobim. ‘É um levantamento da memória, então tem que ouvir todo mundo’”
Para o direito, o que é discutido entre os políticos para que uma lei seja aprovada, não interessa. O que interessa é o texto da lei aprovada. No caso, a Lei 12.528/11 diz o seguinte:
“Art. 1o É criada (...) a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período (...) [de 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988] a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Art. 3o São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:
I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o;
II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;
III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;
IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos politicos (…);
V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;
VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e
VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.”
Repare que a lei em nenhum momento diz quem a Comissão deve investigar. Ela não foca em quem fez, mas no que foi feito. É partindo do que foi feito é que ela passa a investigar quem fez e por que fez. Logo, não há nenhum impedimento legal para que ela investigue os dois lados.
O que chamamos de comissão da verdade é algo novo no mundo jurídico e inspirado, em grande parte, pela iniciativa (bem sucedida) feita pela África do Sul depois do fim do apartheid.
A iniciativa sul-africana, por sua vez, foi inspirada pelos coroner’s courts que surgiram na Inglaterra por volta do ano 1066 (e que existem até hoje). E para entender essa novidade no Brasil, vale a pena tentarmos entender o que é um coroner’s court.
Os coroners, que são médicos ou juristas que investigam a identidade do morto e as circunstâncias de uma morte que não ocorra por causas naturais. Se a morte não tem causas naturais evidentes, ou é violenta ou a causa é desconhecida, eles podem proceder com autópsia (é o que os médicos legistas fazem no Brasil). E mais: se as circunstâncias da morte são controversas ou podem gerar lições para evitarem mortes similares no futuro, os coroners podem ordenar um jury inquest, que é um júri presidido por um juiz e composto por jurados leigos. A função desse jury é determinar a versão oficial para aquela morte, sem atribuir culpa ou pena. E é mais ou menos esse o objeto da Comissão da Verdade.
Boa parte da resistência a tal Comissão no Brasil ocorre porque é algo completamente novo para nós.
No Brasil, associamos julgamento com atribuição de culpa. Se você foi julgado, você é culpado ou não; e se for culpado, terá uma pena. Mas essas cortes/júris não são cortes no sentido de julgarem alguém. Elas não têm esse poder. Muito menos podem estabelecer penas. A função delas é apenas investigar as circunstâncias de morte quando essas circunstâncias são desconhecidas e, se necessário, gerar lições para o futuro. A ideia é trazer paz para a sociedade estabelecendo o que ocorreu de uma vez por todas. Isso é especialmente importante quando a morte envolve agentes estatais. A ideia é que, como essas cortes são formadas por pessoas comuns, elas não têm interesse de proteger ninguém, mas apenas descobrir a verdade dos fatos de forma imparcial. Em outras palavras, a versão oficial é determinada por representantes da sociedade e não por representantes do governo.
E é justamente isso que o artigo 1o da lei diz que ela existe “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.
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