Retrocesso administrativo
11 de março de 2012 | 3h 10
O Estado de S.Paulo
É uma violência contra os direitos do cidadão, um retrocesso administrativo, uma artimanha financeira e uma esperteza jurídica a iniciativa do governo Geraldo Alckmin de tentar obter na Justiça autorização para desapropriar imóveis, pagando por eles apenas o valor venal e imitir-se na posse do imóvel tão logo tenha feito o depósito do valor na Justiça. Desse modo, o governo Alckmin tenta reduzir as despesas com desapropriações, tomar posse o mais depressa possível do imóvel desapropriado e deixar para a Justiça decidir o valor a ser pago ao antigo proprietário. Se, depois de muitos anos, perder a causa, o governo do Estado lançará o valor na longa fila dos precatórios, isto é, dos pagamentos devidos pelo poder público por sentença judicial definitiva, mas que estão sendo quitados em prazos a perder de vista. Os brasileiros que vivem em São Paulo não merecem esse tipo de tratamento das autoridades.
Supunha-se que, desde a promulgação da Constituição de 1988, essa questão estivesse claramente resolvida no plano legal. Entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão assegurados pela Constituição está o de recebimento de "justa e prévia indenização em dinheiro" em caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social. Para não deixar dúvidas, os constituintes de 1988 reforçaram essa garantia, reafirmando, no capítulo da Política Urbana, que "as desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro".
A posse do imóvel pelo governo está condicionada ao depósito do valor determinado por uma perícia e à retirada, pelo desapropriado, de 80% desse valor. Ainda assim, o desapropriado pode questionar o valor fixado pelo perito. Mas terá assegurado o pagamento de pelo menos 80% daquele valor.
Esses preceitos acabaram com as longas demandas judiciais a que tinham de se lançar os proprietários dos imóveis desapropriados, por causa do baixo valor oferecido pelo poder público que decidira a desapropriação, e do qual nada recebiam até a sentença judicial. Na maioria dos casos, as sentenças eram favoráveis aos antigos proprietários, mas o governo retardava o pagamento, prática que acabou gerando bilhões de reais em precatórios. Em vários casos, a plena quitação desses valores levava décadas. Governantes que nada tiveram com a ação que resultou nessas despesas fazem o pagamento devido, às vezes não para a pessoa prejudicada, mas para seus herdeiros.
É essa relação conflituosa entre cidadãos e Estado e danosa à sociedade que o governo Alckmin quer restabelecer, para obter um ganho financeiro que até melhorará seu desempenho fiscal, mas pouco significará proporcionalmente às imensas receitas que normalmente tem obtido, sem precisar recorrer a artimanhas.
Valeu-se, para isso, de um instrumento jurídico denominado "arguição de descumprimento de preceito fundamental" (ADPF), ação que só pode ser ajuizada no Supremo Tribunal Federal por um número limitado de proponentes (entre os quais os governadores de Estado), com o objetivo de reparar lesão a preceito fundamental resultante de algum ato do poder público. A ação ainda não foi julgada.
O valor venal é definido por funcionários públicos com base em critérios que podem ser úteis para determinar a base de cálculo de tributos incidentes sobre propriedade ou transferência de imóveis, mas não é necessariamente igual ao valor de mercado. A expressão constitucional "justa e prévia indenização em dinheiro" retirou da autoridade que decide a desapropriação o poder de fixar o valor da indenização. É esse poder que Alckmin quer ter de volta, assim como a possibilidade de remeter para governantes futuros o pagamento do valor que, mais tarde, vier a ser fixado pela Justiça para a desapropriação.
"É uma expropriação, porque o proprietário, além de perder o imóvel, não vai receber por ele. Isso me lembra decisões de governos autoritários", comparou o advogado Ventura Alongo Pires, em declaração ao Estado.
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