17.4.11

Justiça na Venezuela

A seguinte matéria do Estadão de hoje, caderno Aliás, dá um retrato extremamente preocupante do rumo do Poder Judiciário na Venezuela. Aliás, dá um retrato triste dos rumos daquele país. Vejam.


Justiça relâmpago

Como Hugo Chávez transformou em criminosa a magistrada que ousou fazer corretamente o seu trabalho: aplicar a lei

17 de abril de 2011 | 0h 49
Belisário dos Santos Jr. - O Estado de S.Paulo
"A Justiça morreu!", disse a juíza venezuelana Maria Lourdes Afiuni, em prisão domiciliar, aos advogados da missão da International Bar Association, IBA (Associação Internacional de Advogados), que a visitavam em Caracas, em fevereiro. O "crime" da juíza Afiuni: haver reconhecido, no final de 2009, o excesso de prazo para a prisão preventiva de um acusado de fraude financeira, preso provisoriamente havia quase três anos, quando o período máximo previsto em lei é de dois anos. A especial circunstância: aquele era um "preso de Hugo Chávez".
Afiuni simplesmente aplicou a lei de seu país, e pagou caro por essa ousadia. Quinze minutos após divulgar sua decisão, a magistrada foi presa. A data da detenção não podia ser mais amargamente irônica: 10 de dezembro, dia internacional dos direitos humanos.
Horas depois da prisão de Afiuni, o presidente Hugo Chávez, em pronunciamento veiculado por cadeia nacional de televisão, pediu pena de 30 anos de prisão para a juíza, que havia determinado a libertação de um inimigo do regime.
Nunca houve, entretanto, recurso oficial da decisão da juíza. Em vez disso, ela foi acusada de vários crimes, inclusive o de "formação de quadrilha", acusação posteriormente abandonada diante da ausência de "cúmplices". A acusação de corrupção também caiu ante a falta de prova de qualquer intenção, por parte de Afiuni, de obter vantagem pessoal com sua decisão.
O episódio mostra-se ainda mais estarrecedor diante do fato de que, antes mesmo da decisão da magistrada, o grupo de trabalho da ONU sobre detenções arbitrárias já havia considerado abusiva a prisão por ela revogada.
Trata-se de exemplo flagrante do processo de desinstitucionalização progressiva por que passa a Venezuela. As instituições são formalmente mantidas, mas já não servem ao seu objetivo. Hoje, naquele país, o Estado chama-se Chávez.
Desde 1999, a Constituição Bolivariana dá autorização para a livre remoção de juízes, sem direito de defesa, a título de "depuração da Justiça". Mais da metade do Poder Judiciário é hoje composta de juízes provisórios, que podem ser destituídos ao sabor da vontade do Executivo. São inúmeros os casos de juízes destituídos por tomarem decisões contrárias aos interesses do governo.
Chávez determinou também o aumento da composição do Tribunal Supremo de Justiça, tendo nomeado, em dezembro de 2004, 17 membros efetivos e 32 suplentes, grande parte dos quais ativistas políticos do partido oficialista. Desse modo, segundo análise da Human Rights Watch, o governo se apoderou do mais alto tribunal do país.
A supressão da independência da Justiça venezuelana vem sendo abertamente defendida por alguns de seus principais representantes. A chefe do Poder Judiciário afirmou publicamente, em 2009, que o princípio de separação de poderes debilita o Estado.
Há poucas semanas, falando em nome do Tribunal Supremo, um magistrado afirmou que a função principal do Poder Judiciário na Venezuela é apoiar a busca do governo nacional por um socialismo bolivariano e "democrático". E esclareceu os parâmetros "legais" dessa busca: a lei que foi justa ontem, hoje pode não ser mais, ainda que não revogada.
Em depoimento à missão da IBA, uma respeitada juíza venezuelana testemunhou que, desde 1999 até agora, as sentenças vêm sendo proclamadas sob o risco de pronta destituição do magistrado. Agora, além disso, as decisões são adotadas sob o terror da prisão imediata. É o "efeito Afiuni".
Não é exagero supor que a prisão da juíza Afiuni tenha sido praticada como uma espécie de pena de morte velada. As prisões venezuelanas estão entre as mais violentas do mundo, com mais de 450 mortes por ano. A juíza foi obrigada a conviver com presas que ela havia condenado. Foi submetida a humilhações e maus-tratos. Teve recusada atenção médica em várias oportunidades.
Por longo tempo, determinações tanto da Comissão quanto da Corte Interamericana de Direitos Humanos que apontavam a ilegalidade da prisão de Afiuni e instavam o Estado venezuelano a conduzir a juíza a local mais apropriado e seguro foram simplesmente ignoradas. Somente no início de fevereiro, quase 14 meses após sua prisão, o crescente clamor internacional resultou na troca da reclusão em penitenciária pela prisão domiciliar.
Numa reafirmação daquele que deve ser o compromisso de qualquer advogado diante de toda injustiça - e na presença da mãe, da filha e dos advogados da magistrada -, os membros da missão da IBA prometeram a Afiuni divulgar o vergonhoso episódio de sua destituição, perseguição e prisão, e o aparato ideológico arbitrário que o envolve.
Ao saírem da modesta residência, os membros da missão da IBA puderam ler, grafitado nos muros ao redor da casa da juíza, o desagravo de seus concidadãos: "Juíza Afiuni, integridade e valor".
BELISÁRIO DOS SANTOS JR., ADVOGADO,
FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA E DEFESA DA
CIDADANIA DO ESTADO DE SÃO PAULO, É MEMBRO DA COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS
E INTEGROU A MISSÃO DA IBA À VENEZUELA 


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