Copio aqui trecho de um artigo do colega Airton Vidolin Marques Junior, que saiu publicado no blog coletivo judexquovadis.blogspot.com
O trecho copiado segue da metade para o final.
O Brasil, todavia e majoritariamente, segue na contramão dos países
reconhecidamente mais firmes na preservação da sociedade e dos
cidadãos. Não bastasse ter passado a aplicar o princípio da
insignificância de modo imoderado, passou a desvirtuar também o
conceito inicial de Claus Roxin. Houve afastamento da real noção de
insignificância (ninharia, valor irrelevante), estendendo o conceito
para valores que já apresentam certa significância (ainda que
pequena). Como alerta o juiz Renato Soares de Melo Filho, “deixou-se
de defender a bagatela a um cigarro, alfinete, prego, dentre outras
mesquinharias que permitiriam análise no campo da culpabilidade.
Fala-se hoje em dia, pasme-se, na despretensiosa irrelevância de bens
cujo valor alcance cem, duzentos, trezentos ou mais, vá lá, reais”.
Mais: passou-se a desconsiderar o juízo de reproche de acordo com as
condições pessoais do agente para se adotar um critério exclusivamente
objetivo, de acordo com o valor do objeto em proporção ao patrimônio
da parte lesada.
Com o devido respeito, tenho que isso se afigura fruto de
interpretações equivocadas.
O primeiro, por agir de modo mais severo com a vítima pelo simples
fato de possuir melhores condições econômicas, incorporando ao direito
criminal uma sinistra luta de classes. Aliás, levando ao extremo, uma
pessoa que furtasse uma única ferrari da própria empresa Ferrari
poderia ser beneficiada com a insignificância, pois uma ferrari
furtada não seria suficiente a lesionar considerável e
proporcionalmente o patrimônio da empresa.
O segundo por se equivocar sobre a noção de direito penal de autor.
Sob o pretexto de não incorrer em direito penal de autor se está
paulatinamente excluindo tudo o que é subjetivo (ligado às condições
pessoais do agente) da análise do juízo de reprovação da conduta.
Ocorre que direito penal de autor é aquele em que a punição recai
sobre a pessoa exclusivamente em razão da sua periculosidade biológica
ou da sua maneira de ser (sem que um ato lesivo à sociedade seja
exteriorizado). Diferente é o direito penal de ato, em que a pessoa é
punida por ter praticado uma conduta humana penalmente prevista como
reprovável. No direito penal de ato (ou de fato) em que a sanção recai
sobre o que a pessoa já fez, não há obstáculo em se considerar as
circunstâncias subjetivas para aferição do juízo de reproche ou para a
mensuração da reprimenda penal. Pelo contrário, é até mais atenta à
isonomia, conferindo tratamento diferente para pessoas diferentes (ou
por acaso há alguma dúvida de que, por exemplo, uma pessoa que conte
com diversas condenações anteriores seja merecedora de punição mais
severa do que aquela que é primária e que praticou apenas um fato
isolado em sua vida).
Pessoalmente, creio que a conjugação do funcionalismo sistêmico com a
teoria das janelas quebradas, é consentânea com a realidade e
prestigia a vida em sociedade, centrando-se especialmente na pessoa
cumpridora de seus deveres e não naquela violadora do ordenamento
jurídico.
Inclusive, elevando-se ao absurdo a concepção majoritariamente adotada
no Brasil, viável seria que se expedissem desde logo salvo-condutos
para que todas as pessoas pudessem realizar pequenas subtrações, o
que, logicamente, ofende o pacto social, tornando vulnerado o
princípio da confiança (Vertrauensgrundsatz), que tem por mote a
expectativa que cada pessoa tem de que a outra irá agir de acordo com
a conduta prevista pelas convenções e regras sociais.
Laura Gondro Vidolin [minha caríssima avó], com a sabedoria dos
antigos, ensina que “quem furta um tostão, furta um milhão”. Vale
dizer: quem é capaz de praticar um pequeno furto é igualmente capaz de
cometer um grande furto. De fato, o preceito ético violado é
exatamente o mesmo em qualquer uma das hipóteses e a impunidade tem o
condão de fomentar a ocorrência de outros crimes, frustrando as
expectativas sociais e trazendo instabilidade à vida em sociedade. Daí
que entendo inaplicável o princípio da insignificância.
Ayrton Vidolin Marques Júnior
Juiz no Estado de São Paulo
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