24/07/2011
Mutirão: risco de alimentar ciclo da criminalidade
Sob o título "Presos em regime fechado: uma questão de metodologia", o artigo a seguir é de autoria do desembargador Augusto Francisco Mota Ferraz de Arruda, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Foi publicado originalmente no blog "Judex, Quo Vadis" (*).
Sob o título de "Conflito de Métodos", a revista eletrônica CONJUR (19.07.11) trata do mutirão carcerário promovido pelo CNJ que pretende revisar processos,no Estado de São Paulo, de presos em regime fechado.
O desembargador Fábio Gouvêa, Coordenador Criminal e de Execuções Criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo ajeitou o nó da gravata e deixou a dita coordenadoria afirmando que "o mutirão carcerário tem uma ótica distorcida" e que teme “que com a metodologia do CNJ, da qual discordo, a sociedade seja prejudicada com a saída abrupta de pessoas que não têm a menor condição de voltar à liberdade”. São sérias e graves essas afirmações e não podem deixar de serem levadas em consideração.
O juiz federal, DD. Dr. Walter Nunes, que está conselheiro e chefe da equipe intervencionista, por sua vez, informou que será aplicada uma “metodologia” própria do CNJ já experimentada, com sucesso, em outras regiões do Brasil, segundo disse o texto do CONJUR, de 19-7-11, acrescentando que “pelo menos 50 mil presos podem ganhar as ruas nos próximos cinco meses no estado de São Paulo”, esclarecendo, todavia, logo a seguir, que “de 2008, quando os mutirões foram criados, até agora, o CNJ já analisou 276 mil processos no Brasil. De acordo com informações do Conselho, foram liberados nos mutirões ao todo 30,5 mil presos, número que representa 11% do total de processos avaliado”.
De qualquer forma, se levarmos em conta a estatística percentual do CNJ, em São Paulo, aproximadamente 18 mil presidiários serão colocados em liberdade, ou seja, 11% dos 170 mil presos existentes no Estado de São Paulo.
18 mil presos! É uma cidade de presidiários nada bonzinhos se considerarmos que cumprem penas em regime fechado, não obstante as mil e uma facilidades que são postas na lei penal para não deixar criminosos presos por muito tempo.
Por isso vou um pouco além do que pode significar esse mutirão.
A terminologia empregada para definir ou justificar a intervenção do CNJ em São Paulo como sendo uma questão apenas de método do CNJ me parece eufemística. Na realidade, não se trata de divergências de metodologia, mas de política carcerária. O CNJ pretende unificar em todo território nacional um compromisso ideológico pragmático e utilitarista, cujo principal propósito seria o de “aliviar” os presídios da fantástica massa de encarcerados que cumpre pena em regime fechado.
Portanto, tudo indica que a intervenção do CNJ, comprometido com essa ideologia totalitária, paradoxalmente mais liberal e progressista, visa em última análise, soltar criminosos, presumível e potencialmente menos perigosos dentre os já reconhecidamente perigosos. Esta política, contudo, pode se mostrar temerária se os juizes revisionistas do CNJ se preocuparem exclusivamente com a forma, sem atentarem para os prováveis e nefastos resultados que possam advir da liberação, antes do tempo, de criminosos que já demonstraram, independente das subjacentes causas sociais e individuais que os levaram ao crime, completo desapego à vida social organizada; ou sociopatas, como os classifica a moderna psiquiatria forense.
Mire-se nos exemplos que se repetem corriqueiramente na mídia, de facínoras que matam os próprios pais; matam, com requintes de crueldade namoradas, esposas, companheiras; matam desafetos por vingança; estupram e matam mulheres e crianças desprevenidas; e, por fim, aqueles que abundam nas grandes cidades, que matam covardemente para roubar e que não raro são criminosos reincidentes. São estes tipos que se presume que estejam cumprindo penas em regime fechado e superlotam os presídios paulistas num estarrecedor número que chega a 170 mil. Assim, antecipar a libertação desses criminosos, ainda que revelem formalmente serem menos perigosos que os demais, não deixa de representar um inequívoco risco social, já que basta que um apenas, dentre os beneficiados com a liberdade antecipada, volte a matar um inocente para justificar a necessidade de um rigor legal inflexível na sua soltura, notadamente pelas estatísticas que se elevam a todo instante no que se refere à reincidência criminal.
Por outro lado, é sabido que os criminosos são exímios conhecedores das leis penais, além de, na sua esmagadora maioria, mascararem a sua constituição psíquica criminosa com uma representação exterior convincente sobre a sua evolução moral, quase sempre seguida de justificativas de terem sido vítimas do sistema social ou familiar, mascaramento, é certo, que só pode ser avaliado por profissionais da área médica psiquiátrica. Isso sem contar a repercussão no mundo criminoso a respeito da eventual leniência com que passaram a ser tratados os presos do regime fechado que se sentirão, de certa forma, moralmente justificados, em visível desfavor da sociedade civil.
É inegável que a prática da política social do governo, especialmente no que se refere à educação e saúde, é tragicamente incipiente em nosso país. Já a própria estrutura capitalista de funcionamento do sistema social leva a permanência, no interior do indivíduo adulto e moralmente despreparado e deseducado, de uma insuperável e infantil incapacidade para lidar com a alteridade. Entretanto, a despeito dessas irrefutáveis verdades, não se pode elevá-las a um alto grau de romantismo ideológico sobre liberdade e direitos humanos e colocar em risco a segurança e a vida de um único inocente, simplesmente para satisfazer resultados estatísticos de uma política prisional divorciada da dura realidade em que vivemos.
A vida no espaço público está se tornando, a cada dia que passa, assustadoramente angustiante, aflitiva e, o que é gravíssimo, o crescimento ponderável de dramáticas neuroses que impedem pessoas de saírem de suas casas com medo de serem vítimas de um criminoso.
Não é por acaso que a sociedade vem desenvolvendo uma paradoxal tendência à desvalorização da vida humana, quer sob a ótica do tratamento dispensado ao presidiário, quer sob a ótica da imensa massa de desafortunados que vive em guetos e favelas insalubres, onde não existe lei e nem alma, enquanto que, por sua vez, os economicamente mais capacitados se fecham em seus carros blindados, em centros de compras, em condomínios fechados, contratem seguranças pessoais e vão desfrutar férias livres e soltos em países onde a criminalidade não alcançou o estágio alarmante do Brasil.
É por isso tudo que se deve pensar sobre a ideologia progressista praticada pelo CNJ que, apartada da realidade da vida nos espaços públicos, quer esvaziar os presídios para que se abram vagas para novos delinqüentes, ou para contumazes reincidentes, ou seja, é uma política carcerária que, no fundo, apenas sustenta e alimenta o ciclo da criminalidade, ao invés de contribuir efetivamente para o combate às causas subjacentes e determinantes desse nefasto ciclo prisional. Há que se dizer também que a questão prisional brasileira não pode ser tratada como se fosse uma mera formalidade burocrática que, sob o frágil fundamento de divergência metodológica, se distancia, em muito, do princípio jurisdicional que visa, por meio do processo judicial, dar a pena merecida ao criminoso e que ela seja efetivamente cumprida.
No Brasil, não se desenvolvem programas habitacionais consistentes, não se constroem hospitais públicos, não se constroem creches e escolas públicas, assim como não se constroem presídios em número suficiente para dar vida minimamente digna aos criminosos, ainda que reconhecidamente facínoras. Daí a política de resultados independente das conseqüências em que a solução mais fácil, barata e bastante cômoda para a Administração Pública, é conceder benefícios aos presos à mão cheia.
Em tais condições, a menos que existam motivos reais, concretos e não publicados, que, em tese, justificariam a necessidade dessa mega intervenção nos juízos de execuções criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo e ainda mais com o beneplácito dos dirigentes deste mesmo tribunal, fica a certeza de que o CNJ veio de fato para impor uma ideologia própria e uniforme a favor do criminoso em detrimento do bem coletivo maior que é o direito de se ter segurança e tranquilidade de livre trânsito e permanência nos espaços públicos, bem como o de não transformar moradias em fortalezas.
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